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Mariana Belmont

Desta vez é mentira! 2020 começou bem antes do Carnaval

ECOA

27/02/2020 04h00

Passei o Carnaval em casa entre uma gripe, livros, textos e maratona de séries, uma saída ou outra para pegar garoa e passar frio, para piorar a gripe.

Vivemos em tempos que não dá para mergulhar com tranquilidade e chegar no topo do rio para respirar antes do próximo mergulho, é impossível. A sensação é que quando a gente volta alguém está ali para te empurrar e te afogar. Não há respiro, cara, é intenso. E esse tem sido nossos anos. Por isso, fiquei imaginando que não dá pra achar que a vida do país começa só depois do Carnaval, talvez fosse assim antes, mas agora?

Tem uns dias que fiquei aqui refletindo sobre a declaração do ministro da Economia Paulo Guedes, sabe? "Até mesmo a 'empregada doméstica' estava viajando para a Disney". Afinal, tudo tem limite e subir na vida só de elevador de serviço. Será que perdi o time para essa história?

Minha tia é diarista, de segunda a sábado ela esta na casa de desconhecidos recebendo uma valor inviável para sobreviver, para limpar a casa deles, que por vezes reclamam que ela não limpa direito a casa que não é dela, mas ela precisa dessa grana. Minha tia nunca teve vontade de ir para a Disney, Guedes.

Meu padrinho é carpinteiro a vida inteira, é um artista, sempre achei meu padrinho um artista. Subir em lajes para deixar casas de gente muito rica bonita. Meu padrinho voou muito durante um período que tirava uma grana semanal muito boa, tinha uma obra atrás da outra. Meu padrinho, ministro, jamais teve vontade de ir para a Disney.

Eu mesma nunca tive vontade.

Mas a declaração do ministro reverbera em mim, que tenho na minha família trabalhadores não valorizados, e que talvez nunca se aposentem (obrigada aos envolvidos). A fala do Guedes é um recado: se vocês já tiveram condições de viajar de avião, encher os aeroportos e se misturar com a gente, se vocês podem ter carro, uma TV legal, chega. Esse tempo acabou, não vão ter mais. Será?

Me parece que o ano começou mesmo no dia primeiro de janeiro. A lógica me parece sempre a mesma, o pobre não pode e ponto. Pobre tem seu lugar e seus destinos profissionais e ponto.

Tudo isso para lembrar que 2020 está aí e que em 2 meses o governo conseguiu levar o país para um abismo ainda maior, jogando na frente a maioria da população. Se em 2019 foi o ano que a gente entendeu que dá sim pra morrer mais gente, dá sim pra acontecer mais de uma desgraça por dia, 2020 é o ano da consolidação do discurso de ódio contra pobres, negros, índios e mulheres. É guerra.

A elite não gosta quando a gente chega perto, eles olham de longe e planejam como vão tirar nossas conquistas. Estamos em um momento da história que o Estado segue mais cruel e assassino, o que nos resta é forçar o pé na porta do sistema.

Mas, e aí? Dá tempo da gente conversar? Sentar junto e pensar sobre qual cidade e país que queremos (acho que faço essa provocação aqui pela segunda vez). Quais são as possibilidades de ocupação, pressão e construção coletiva?

Precisamos avaliar, sim, o passado e todas suas conquistas para entender as estratégias de luta do presente e do futuro. Não dá mais para passarmos pano para vacilos partidários ou de grupos específicos, eles também não dão conta da complexidade que estamos vivendo. O tempo da espera passou, se não andarmos juntos não haverá mais país, estaremos todos caminhando em escombros.

Sobre a Autora

Nascida em Colônia, extremo sul da cidade de São Paulo, Mariana Belmont se define como uma esticadora de pontes. Atuando com mobilização e comunicação para políticas públicas, faz parte da Rede Jornalistas das Periferias, constrói o Ocupa Política e colabora com a Uneafro Brasil.

Sobre o Blog

Cidades que são florestas, florestas que são cidades, mudanças climáticas e conexões para viver melhor. Semanalmente, Mariana Belmont pensa sobre o que tudo isso tem a ver com a gente, e explica melhor essa história de meio ambiente sermos todas e todos nós juntos no mundo.