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Mariana Belmont

A política pública das rodas samba nas periferias

ECOA

12/12/2019 04h00

"É resistir pra existir, realizar. É um só querer um só coração, é minha nação, é o povo na cabeça…"

Um dia voltando do Pagode da 27, depois da resenha, eu fiquei com as músicas todas e as imagens na cabeça, que lindo. Na minha cabeça se passava a importância desse rolê acontecendo todo domingo, religiosamente a partir das 16h naquela rua, no meio do caldeirão que é o Grajaú. No último domingo, 8 de dezembro, foi a última do ano, a comunhão entre os amigos e a força que a gente tem quando está junto é incrível. 

Na 27 a gente se encontra com quem veio do mesmo lugar que a gente, é lindo. Mais que isso, é bonito ver a gente cantar junto antes de a semana começar, é potente a confiança. Em especial agradecer a política do samba construída por todos os músicos e todas as famílias, que não medem esforços para que a comunidade se sinta em casa e que tenha dias melhores.

O samba e o pagode fazem parte da minha vida desde muito nova. Eu acordava aos finais de semana com os discos do Fundo de Quintal, Leci Brandão, Raça Negra e a incrível Dona Ivone Lara, em alto e bom som se espalhando pelo quintal até a entrada do portão. Meu irmão cantarolava os hinos da Gaviões da Fiel. As feijoadas na casa da Tia Lurdes sempre tinham samba, sempre, os meninos sempre levavam instrumentos e ali ficavam por horas. Eu era criança ainda, depois pré-adolescente e depois já podia ousar e frequentar com os amigos as rodas da região.

Aprendi em casa, na rua, com a minha família e amigos o valor da presença dessa celebração nas ruas e vielas de cada território desse país. Tenho falado que samba nas periferias são políticas públicas autogestionadas, são espaços de troca de arte, cultura, afeto, amor e política. Isso não pode acabar, nunca. O samba dá a oportunidade de sonhar, de saber das histórias de quem veio antes de nós. As rodas de samba nas periferias das cidades, em especial São Paulo, são espaços de encontro, solidariedade, generosidade e, para além de um gênero musical, é o batuque que faz sim nascer uma política pública consistente e de melhores resultados para os moradores dos bairros.

Nos sambas arrecadam roupas e alimentos para quem precisa, reúnem e pensam nas crianças, nos idosos, nas famílias, respeitam os horários e a dinâmica dos moradores. Queria eu o Estado ser gerido pelos sambistas que fazem a gestão das rodas nas quebradas. Pensando aqui como as comunidades fazem parte da nossa vida, entendendo esses espaços como extensão das nossas casas, onde nasce o amor, onde a gente encontra a família e para muitos até constrói a família. Isso é lindo, poderoso e faz de verdade a dinâmica do território se movimentar. 

Na ditadura, quando o samba foi censurado, os sambistas receberam um veto com a seguinte justificativa: "Conteúdo que permite lembrar a situação social do negro em nossa história: racismo". O documento, que só veio a público há poucos anos, em meio ao acervo da ditadura militar digitalizado pelo Arquivo Nacional, é um dos muitos que provam como o negro e qualquer menção à sua situação social foram temas silenciados no período.

Esse trecho nos mostra a força e a resistência das comunidades de samba, comunidades negras, que resistiram e resistem pela sua existência, por meio da cultura e ocupação dos espaços que lhes foram tomados, e que hoje estão centralizados nas periferias, ou nos espaços do centro que historicamente são de referência de cultura negra, mas seguem gentrificados pelo desenvolvimento excessivo

Chega cedo, puxa lona, recebe os amigos, monta o som, partilha cerveja, espia as crianças juntas brincando, canta, chora e sorri a mesma alegria de viver, com a sua comunidade. Se os sambas e pagodes criados na rua das periferias dessa cidade não são políticas pública de excelência, permanência e conexão com nossos territórios historicamente abandonados pelo Estado, meus amigos, qual outro resultado de tanta potência? 

É  igreja de domingo, é terreiro, é o almoço com a família, é a celebração da felicidade de quem acorda no outro dia às 4h e atravessa a cidade para trabalhar. A alegria de quem enfrenta horas no transporte público, salário ruim, preconceitos nos bairros ricos. É no caminho do trabalho que conseguem escrever sua letra de samba e sonham com o progresso. 

Alguém me avisou – Dona Ivone Lara 

Alguém me disse
Que tu andas novamente
De novo amor, nova paixão
Toda contente
Conheço bem tuas promessas
Outras ouvi, iguais a essas
Esse teu jeito de enganar
Conheço bem
Pouco me importa
Que te vejam tantas vezes
E que tu mudes de paixão
Todos os meses
Se vais beijar, como eu bem sei
Fazer sonhar como eu sonhei
Mas sem ter nunca
Amor igual ao que eu te dei.

Acho bonito quem cultiva carinho por comunidades de samba, acho que é a expressão mais sincera da conexão com quem você é. A minha comunidade chama Pagode da 27, fica no Grajaú, extremo sul da cidade de São Paulo. E faço parte da família há 8 anos. Já chorei, já sofri por amor, já sorri, já fui protegida, já recebi festa por mudar de trabalho, sempre conectada a essa família que o samba me deu. 

27 Motivos – Pagode da 27

Você cantou meu samba
Encantou o coração de muita gente bamba
Resumiu cantando o sentido de amar
Traduziu em palmas a obra do compositor
Você sem perceber
Com o seu vermelho e branco invadiu o meu peito
Derramei tanta lágrima fiquei sem jeito
É você 27
E o mundo pode até parar

Não deixei de compor
O seu nome exaltar
Comunidade jamais deixarei de te amar

Não deixei de compor
O seu nome exaltar
Comunidade jamais deixarei de te amar

Grajaú homem forte
Já vestiu o manto
Pra proteger esse povo
Que sofre mais não perde o encanto

Zona Sul, tenho 27 motivos pra viver no Grajaú.
Zona Sul, tenho 27 motivos pra viver no Grajaú.

Sobre a Autora

Nascida em Colônia, extremo sul da cidade de São Paulo, Mariana Belmont se define como uma esticadora de pontes. Atuando com mobilização e comunicação para políticas públicas, faz parte da Rede Jornalistas das Periferias, constrói o Ocupa Política e colabora com a Uneafro Brasil.

Sobre o Blog

Cidades que são florestas, florestas que são cidades, mudanças climáticas e conexões para viver melhor. Semanalmente, Mariana Belmont pensa sobre o que tudo isso tem a ver com a gente, e explica melhor essa história de meio ambiente sermos todas e todos nós juntos no mundo.