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Mariana Belmont

O feminismo da ponte pra cá conhece a cidade inteira

ECOA

12/03/2020 08h19

Em ritmo de mês da luta pelos direitos das mulheres, eu começo esse texto para dizer que nunca me considerei feminista. É sério, hoje com mais clareza sobre o que significa essa palavra e a importância da luta das mulheres para que o feminismo seja defendido por todas nós, todo os dias. Mas assumo a minha dificuldade em me definir feminista. Vou explicar melhor para ninguém achar que estou rachando mais um movimento (risos). 

Nasci, cresci e fui criada por uma quantidade absurda de mulheres, minha madrinha cercou a gente de muito amor e cuidado. Muitas outras mulheres, tias, reuniam-se em grandes mesas no final de semana contando muitas histórias de Pernambuco, estado da minha madrinha e da maioria da família. Meu padrinho é um senhor quieto, coração tranquilo e gosta de observar e ouvir de longe toda a bagunça. 

A vida me deu uma madrinha dentro do ônibus. A minha mãe acordava 3h30, saía 4h de casa, no bairro de Colônia, em São Paulo, pegava o primeiro busão e seguia para trabalhar no Brás. Eu ia junto até meus sete meses de vida. Ela me deixava no estoque da loja enquanto trabalhava, depois pegava busão de volta e chegava quase meia-noite em casa. Um dia, bem cedinho, minha mãe conversava com uma moça, falando do trabalho que era me levar todos os dias pra tão longe. Foi então que a moça disse "mas minha mãe cuida de crianças". Foi desse diálogo simples e inesperado que, às 4h, no ônibus sentido Santo Amaro, a vida me deu uma família.

Minha madrinha veio no pau de arara lá de Pernambuco, sem documentos, firmada na fé que aqui as coisas iam ser diferentes, e foram. Trabalhou no chão da fábrica, teve três filhos, criou um monte de outros, passou por situações das mais diversas pra ser feliz aqui, e quase foi. Ela chorava quando ouvia Amargurado, do Tião Carreiro e Pardinho, talvez fosse alguma saudade. 

E quase foi como milhares de mulheres da margem, dos cantos das cidades. A mulher de onde começa a cidade, que vibra com lugar vazio no ônibus. Que conta os trocados, que quer ter uma vida melhor. Que chora, mas resiste. Que apanha da vida, que apanha do tempo esperando o transporte, mas resiste. Quem nos salva de nós mesmas? Dá tempo? 

É bem ali onde partido político não discute feminismo, não impulsiona a valorização da mulher. É ali que as mulheres chegam tarde da noite, descem do ônibus tarde da noite em lugar sem iluminação. O poder público não lembra do feminismo. Ali onde as casas com homens não respeitam o protagonismo da mulher, que escoram em suas costas com suas incapacidades, que usam de violência e chantagem para aprisionar mulheres. É ali nessa diversidade de pensamentos que vivem as mulheres que ganham menos, que trabalham mais, que cuidam dos filhos delas e dos outros, mas que não podem desistir, mesmo nas horas em que pensam nisso. Não há coragem de soltar a mão de seus filhos, dos seus sonhos. São muitas mães que choram a morte de seus filhos, assassinados pelo estado, pela PM que vive a cercar os jovens de todas as quebradas.

"Perdemos muito tempo ensinando as meninas a se preocupar com o que os meninos pensam delas. Mas o oposto não acontece." — Sejamos Todos Feministas, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie

É nesse misto de história e realidade da margem, nesse caldeirão de sentimento e lembrança que só hoje percebo a força de tantas mulheres que me criaram, tantas mulheres, tantas histórias. Mulheres que carregam cimento nas costas, que organizam mutirões, que estão a frente de movimentos, mulheres. E na raiz das mobilizações políticas nos territórios, nas condições precárias das habitações, com lideranças em sua maioria mulheres, que compreenderam que a organização coletiva era a única maneira de forçar o Estado a cobrir os bairros periféricos com serviços e infraestrutura urbana. Ou levantar acampamentos de assentamentos rurais. 

E já que é pra ser feminista, vamos levar a palavra para corpos de mulheres de luta e que força, que caem e sentem dor, choram, mas não desistem. Que a gente use a palavra para a conexão e perceba nossas diferenças e que dê espaço e força para as mulheres que ajudam de fato a construir esse país. Que a roda de samba da quebrada seja feminista e de luta, que as portas de bares sejam feministas, que o forró da tia Lila seja cada vez mais feminista, que eu possa frequentar lugares, que eu possa ocupar a rua sem precisar ouvir que aquele espaço não me pertence. E que a minha aparência seja como eu quiser que seja. E todas as mulheres construam suas caminhadas, livres e sem amarras do machismo.

Lembrei agora de um trecho do texto da minha amiga Semayat Oliveira, jornalista do Nós, Mulheres da Periferia, que nos deixa com mais reflexões:

"Mas bom, BOM mesmo seria se, na volta pra casa, resquício nenhum de medo nos assombrasse. Que os homens deixassem de escorar sua preguiça, falta de capacidade emocional, planejamento e coragem nas costas de uma mulher. Que fossem mais pais. Que se responsabilizassem por suas escolhas. Que cuidassem de onde vivem e de quem partilha essa morada, só pra ser RECÍPROCO. Que procurassem construir relações mais saudáveis e que pudessem, de fato, contribuir para dias mais leves."

Seguimos, companheiras, a busca da liberdade dói, mas estamos juntas. 

Sobre a Autora

Nascida em Colônia, extremo sul da cidade de São Paulo, Mariana Belmont se define como uma esticadora de pontes. Atuando com mobilização e comunicação para políticas públicas, faz parte da Rede Jornalistas das Periferias, constrói o Ocupa Política e colabora com a Uneafro Brasil.

Sobre o Blog

Cidades que são florestas, florestas que são cidades, mudanças climáticas e conexões para viver melhor. Semanalmente, Mariana Belmont pensa sobre o que tudo isso tem a ver com a gente, e explica melhor essa história de meio ambiente sermos todas e todos nós juntos no mundo.