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Mariana Belmont

É possível ter corpos livres na cidade

ECOA

20/02/2020 04h00

Me parece engraçado que cada semana eu venha com um tema. Mas eu sou assim, são tantas possibilidades de mim que vocês nem imaginam. De tantas formas a gente pensa a cidade, ajusta o coração e o corpo e faz isso tudo misturado, é sobre isso também o que deixa a gente vivo pra lutar.

As cidades também são feitas de corpos, e foi pensando nisso que começo esse texto aqui.

Há algumas semanas me bateu forte um tema que quase nunca li, e na verdade vou ousar aqui falar, mas não é bem a minha área de pesquisa. Estava em uma festa de amigos no Grajaú, zona sul de São Paulo, e acabei sentando ao lado da filha de uma amiga de lá, na verdade eu não a conhecia, foi a primeira vez que tive a oportunidade de estar próximo dela e conversar.

Na hora pensei sobre ser uma criança gorda na periferia, fiquei durante os outros dias pensando sobre isso, como eu era e quem eu era enquanto criança gorda, na escola, em casa, na rua, com os amigos e com a minha família. Numa conversa com outra amiga em um jantar em casa eu falei de supetão como eu me comportava na adolescência. Mas isso tudo gerou em mim curiosidade de lembrar quem eu era, de novo sobre lembranças que nos ajudam a construir o futuro, né?

Eu fui uma criança gorda desde sempre, não me lembro com outro corpo, com outros apelidos além de gorda, baleia, saco de areia, e outros vários clássicos dos anos 90 para acabar com nossa autoestima. Minhas lembranças são de remédios, exercícios com as mães das amigas, piadas dos pais das amigas (que seguem até hoje). Eu nunca fiquei com menino nenhum na escola até acabar o ensino médio, era sempre amores platônicos, cara. Olha só que doideira.

Quando criança, eu me escondia em grandes roupas largas, com a blusa de moletom da Fubu do meu irmão. Eu usava de manhã e, ele, à noite. Usava basicamente legging e camisetas grandes, cabelo preso. Era como se aquela roupa fosse me esconder de qualquer menino ou piada das meninas mais bonitas. Mesmo escondida, eu era a pessoa mais legal do bairro (é sério), eu era a pessoa que mais ria e fazia os outros rirem. Talvez fosse um mecanismo de defesa? Com certeza.

Já adolescente, eu continuei gorda, mas eu era mais a brother da escola, geral gostava de mim. No entanto, eu não era atraente para os meninos, e os amores platônicos seguiam na mesma, nada de novo. Era só ouvir assistir clipe triste na MTV e escrever no meu diário. Eu acabei de dar um Google para entender se há alguma coisa positiva em criança gorda e não há (mais uma vez. se alguém achar, por favor, coloca nos comentários).

Aqui mesmo neste blog eu já fui chamada de gorda, obesa e várias outras coisas como se isso fosse me ofender, não me ofende mais, queridos comentaristas. Tenho um olhar do meu corpo diferente hoje. Mas antes, como criança periférica, não passava nas catracas dos ônibus, tinha problema com roupas e usava a roupa do meu irmão, porque roupa mais cara nunca foi opção em casa, e roupa barata só tinha tamanho de adulto pra mim.

Claro que a obesidade infantil hoje é um problema sério, na verdade sempre foi, e não estamos fugindo disso por aqui, vale ler e assistir vários textos do Dr. Drauzio Varella. Mas, olha, existem pessoas gordas saudáveis, prazer eu sou uma delas. Ano passado eu tirei a vesícula no Hospital das Clínicas, fiquei internada por 8 dias e as perguntas como "você tem diabete? pressão alta? tireoide? ou qualquer outra coisa" eram diárias, inclusive cinco minutos antes da operação, a cara dos médicos e enfermeiros quando eu dizia não era de espanto.

Voltando.

Ser mulher gorda vivendo na cidade de São Paulo é um grande desafio, por muitas vezes a gente se boicota, isso na maioria das vezes. principalmente se você for mulher. Quando a gente se acha bonita se esconde, não sabe receber elogios, passa correndo pelo espelho e segue vida sem se olhar no espelho do prédio perto do trabalho. Ser a gente na cidade que te engole, te julga e te coloca no lugar estereotipado, é tão difícil ser a gente mesmo, talvez por isso a gente siga a vida interpretando quem não é ou sendo alguém horrível só pra ser percebida.

Inclusive nos pessoas gordas às vezes topamos relacionamentos bem merdas, bem abusivos, porque achamos que aquele é o máximo que vamos conseguir, aí a gente se machuca e é machucado e nos culpamos, de novo.

Violamos nossos corpos, nossa cabeça e todos os lugares mais íntimos presos aqui. Mas somos também somos as responsáveis pelas mudanças que queremos, responsáveis por novos olhares e por se reconhecer como um corpo livre na cidade, em casa ou em qualquer lugar.

E como é bonito quando a gente aceita ser exatamente como a gente é.

Sobre a Autora

Nascida em Colônia, extremo sul da cidade de São Paulo, Mariana Belmont se define como uma esticadora de pontes. Atuando com mobilização e comunicação para políticas públicas, faz parte da Rede Jornalistas das Periferias, constrói o Ocupa Política e colabora com a Uneafro Brasil.

Sobre o Blog

Cidades que são florestas, florestas que são cidades, mudanças climáticas e conexões para viver melhor. Semanalmente, Mariana Belmont pensa sobre o que tudo isso tem a ver com a gente, e explica melhor essa história de meio ambiente sermos todas e todos nós juntos no mundo.